(...)Um aporte teórico que tem sido bastante rico para a discussão filosófica desse estudo das relações sociais, numa perspectiva sócio-interacionista e orientada à busca pela teoria social que melhor se adequaria à proposta espírita de transformação da sociedade, é o da filosofia da alteridade, oferecida pelo filósofo lituano e teólogo judeu Emmanuel Lévinas (lê-se "Levinás", pois este intelectual religioso, desencarnado na década de 80, passou a maior parte da vida na França, tendo publicado a sua densa obra na lingua de Kardec). Para este pensador, a relação que caracteriza o ser humano (ser entendido como verbo e humano, como adjetivo) é a relação ao outro.
O conceito de outro, porém, ultrapassa em Lévinas a da "outra pessoa": é o outro, compreendido como aquilo que não sou eu, isto é, a estranheza, a descoincidência de pontos de vista, a surpresa, ou, em síntese, a diferença. Diz ele que a diferença do outro - que ele chama "o rosto do outro" - se manifesta na forma de escândalo para o eu e o obriga a uma postura ética, a qual deve ser a da aceitação e a do diálogo, pois é na linguagem que as diferenças se encontram sem terem que se reduzir uma à outra, isto é, sem a dominação e a anulação do outro pelo eu. O outro, contudo, para esse autor, não é possível de ser dominado completamente, sem deixar de ser humano. Afirma ele que só de um modo é possível dominá-lo por inteiro: matando-o, mas, então, eis que se o perde completamente...
Com essa idéia, que se desdobra em uma série de interessantes conclusões filosóficas, Lévinas quer romper com uma fenomenologia calcada no império da identidade. Efetivamente, toda a construção social do pensamento moderno é fundamentado na identidade, ou, em termos sociológicos, na sociedade dos iguais. O vínculo social é historicamente dependente da redução do homem a uma ou duas características (a adesão a uma crença ou a uma mundividência, como é o caso do ser espírita, por exemplo) e, em seguida, a marcação das diferenças em relação aos outros surge como motivação para a violência e a exclusão.
Revolucionário, Lévinas propõe genialmente que "nós não é o plural de eu", ou seja, a sociedade, para se caracterizar como humana, não pode ser construída a partir da pretensão de poder e anulação da diferença do outro, pela qual a autoimagem ou a identidade que o eu constrói para si possa ser utilizada como paradigma para a redução dos outros. A anulação do outro ou a consideração da diferença do outro como problema e fonte de violência, ao extinguir o diálogo, rompe com a ética da própria existência humana. Em outras palavras, o outro homem deixa de ser sujeito para se tornar objeto. Qualquer semelhança com a relação sujeito/objeto da epistemologia positivista ou suas sucedâneas não é mera coincidência.
No plano filosófico desta discussão, Lévinas oferece uma impressionante base para a fundação de uma ética da fraternidade, por meio da qual poderemos nos apropriar da teoria habermasiana de sociedade e buscar assim compor uma sociologia crítica do movimento espírita e, enfim, apontar rumos para os processos de comunicação que temos a desenvolver. Assunto suficiente para vários emails futuros, que virão, com certeza, se Deus o permitir.
(...)Por longa data, a fraternidade vem sendo definida, a partir da leitura teológica da vivência cristã pastoril dos apóstolos, como a "solidariedade entre os irmãos" (frater, aliás, significa irmão) ou "irmandade". Fraternidade seria, pois, a característica daqueles que se agrupam em torno de seus ideais e características comuns - e vem daí a idéia de "comunidade".
Essa noção, claro, não foi inventada pelos cristãos. Ela procede filosoficamente dos gregos (é daí que vem a explicação muito vulgarizada de que os homens vivem em sociedade porque têm uma natureza "gregária"; mas isso é uma tautologia, um argumento circular que na verdade nada diz, pois é equivalente a se afirmar que o ser humano enxerga por ter uma "natureza enxergante" ou que anda por sua "natureza andante").
Os gregos, provavelmente, foram os inventores do espaço público (ou esfera pública) enquanto reunião dos iguais, para as deliberações da cidade. Os "iguais", naturalmente, eram os homens proprietários nascidos na cidade. Ao postular a igualdade, como base da democracia, a Grécia antiga instituiu, desde o início, também, que toda igualdade fundamenta-se numa redução a uma ou algumas características para as quais se postula a universalidade, redução essa acompanhada da exclusão das demais características que a ela não se enquadrem. Na democracia grega, por exemplo, mulheres, crianças e escravos eram "coisas" do espaço privado (daí a origem da palavra: "privado" é adjetivo que qualifica aquele que sofre a privação da dignidade pública) e os estrangeiros, bem, estes viviam, como os animais selvagens, no "caos", isto é, no espaço para além das fronteiras da cidade e, por isso, eram denominados de forma generalizada como "bárbaros".
Não foi o cristianismo, mas, certamente, foi Jesus Cristo quem quebrou de forma mais aguda uma percepção da fraternidade como sociedade de iguais. Isso porque, em suas recomendações ao amor, ele jamais sugeriu que "amássemos os semelhantes", como é comum dizermos hoje. Penso, cá comigo, que ele não fez isso por saber, talvez, que os semelhantes e a semelhança deles nós já amamos sem qualquer esforço. Operamos a redução dos outros a uma ou mais características comuns (a consangüinidade, a formação profissional, o "ideal espírita", alguns critérios morais de conduta, ou o simplesmente "estar de acordo conosco") e a tais semelhanças dedicamos o nosso amor.
A ética de Jesus Cristo, porém, é ética da diferença. A orientação dele, explícita e multiplicada nos textos que restaram, é a de amar os inimigos, de reconciliar com o adversário, de ser o menor, de não resistir ao mal, de amar o próximo. É evidente que o cristianismo, na medida que se institucionalizou, esqueceu-se dessa ética e a modernidade dentro da tradição judaico-cristã se construiu no paradigma da sociedade dos iguais, sendo, talvez, o sindicato e a religião os exemplos modelares dessa institucionalidade, o primeiro, na defesa corporativa dos interesses e das idéias dos comuns, e, a segunda, no projeto de exclusão dos diferentes e de conversão do mundo à mesmidade.
É preciso, neste momento, esclarecer que uma ética da diferença não é, nem pode ser, contrária à luta pelos direitos humanos, que é luta por igualdade de condições e de direitos. A igualdade aqui criticada é a das homogeneizações e a da exclusão; e, por conseguinte, a diferença aqui defendida não é a postulada pelas posições neoliberais, que usa a diferença como critério de exclusão. Diferença, amigos queridos, não é o mesmo que desigualdade. Aceitar a diferença do outro é justamente o contrário de expulsá-lo de nosso convívio por causa da diferença dele. Eis porque, sob esse ponto de vista, poderíamos postular que uma ética da fraternidade com base na diferença é também uma ética da igualdade relacional: tratar o outro como igual é respeitar a diferença dele; aceitar sua diferença é observar a diferença dele em termos de direitos iguais aos nossos. Igualdade e diferença, pois, numa perspectiva relacional, são faces da mesma moeda, são conceitos dialéticos.
A fraternidade é, pois, mais do que a relação entre iguais. Esse conceito reducionista de fraternidade serviu de argumento para os cruzados da Idade Média se unirem para arrasar os muçulmanos e tomar-lhes as riquezas (e, claro, também para que os muçulmanos fizessem o mesmo com os cristãos).
Eis que, então, podemos partir para uma definição fundamental e axiomática. Fraternidade é a relação pacífica e inclusiva com a diferença do outro.
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