segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Reflexão pós-Natal (Vinicius Lousada)

"Em meu coração reside Jesus da Galileia, o Homem acima do homem, o Poeta que faz poeta de todos nós, o Espírito que bate à nossa porta para que despertemos e nos levantemos e saiamos para encontrar a verdade nua e crua.” (Khalil Gibran) [1]

Natal, Jesus e a recepção de seus ensinos

Recentemente vivemos o período da festa cristã do Natal, data no calendário que o mundo ocidental convencionou referir o nascimento de Jesus de Nazaré, filho de Maria e de José, que trouxe ao mundo uma profunda mensagem de amor através de seus atos e ensinamentos que, apesar da intervenção dos homens mediante as doutrinas religiosas e as prováveis adulterações que sofreram os textos dos evangelistas, permanecem atuais ante os conflitos existenciais que assolam os indivíduos e a grande massa.

É bem verdade que Jesus, Espírito de escol, jamais fundara qualquer religião ou seita[2]. Viveu como judeu e tudo indica que seguiu a tradição religiosa de seus pais, nada obstante, muitas vezes ele fora “religiosamente incorreto”, superando a normose[3] religiosa de seu tempo, como quando pronunciou a parábola do bom samaritano; na conversa com a Samaritana, nas curas que realizara aos sábados, na convivência com pessoas de “má vida”, leprosos e na repreensão que fizera aos fariseus naquela passagem no templo.

A sua relação com os discípulos era a de mestre, professor das verdades eternas que se propunha a partilhar com os Espíritos mais simples a sua filosofia de amor, vida e transcendência da qual decorre uma espiritualidade profunda que, suspeito eu, ainda não ser devidamente compreendida por um enorme contingente de cristãos. Tal ininteligibilidade dos sentidos da filosofia de Jesus pode ser explicada pelo fato de que, normalmente, a massa educada nas religiões tradicionais, na crença pela crença, tende a se ocupar mais do que os religiosos dizem sobre a mensagem do Cristo do que, efetivamente, da meditação em torno de seus ensinos para aplicá-los.

Do mesmo modo, falta para muita gente uma leitura mais espiritual do conteúdo das palavras do Mestre para decodificá-las em prol de possíveis e acertados entendimentos da Boa Nova. Enquanto isso não se soluciona, exegetas bíblicos pertencentes às mais variadas denominações religiosas se ocupam de ratificar seus dogmas, sacramentos e ritos através dos textos denominados sagrados, referindo-se às palavras do Mestre como fundamentos de suas teses. E as religiões de orientação mercadológica seguem à cata de adeptos para se avolumarem em práticas coletivas pouco espirituais, mais afeitas a perturbar a razão do que ocupadas com a promoção dos valores da alma.

Para nós, espíritas, que aderimos a uma perspectiva filosófica onde a categoria “fé” deve ser acompanhada por uma atitude de cultivo da razão, de livre pensar mesmo, interessa-nos os aspectos éticos e morais das lições de Jesus, Espírito Superior que encarnou-se conosco para ensinar-nos a viver e evoluir de forma consciente, sem mediadores oportunistas como fornecia prodigiosamente o farisaísmo de Seu tempo.

Espiritualidade e religião

Nos dias em que vivemos alguns pensadores têm diferenciado religião e espiritualidade. Religião se refere mais ao culto, à institucionalização da fé, a formalização coletiva da experiência pessoal com o sagrado, onde estão presentes a letra dos textos sacralizados, os dogmas, os rituais, o culto exterior e a figura dos sacerdotes que se supõem na condição de mediadores entre Deus e as criaturas.

Já espiritualidade parece remeter à experiência espiritual no âmbito do foro íntimo, calcada na liberdade de consciência e na crescente conscientização e busca de sintonia com as Divinas Leis, sem mediação humana – insisto –, mas como conquista dialógica entre criatura e Criador como recomendava Jesus de Nazaré. Trata-se, por certo, da experiência que Rousseau, no seu clássico “Emílio, ou Da Educação”, chamou de religião natural e que se nomeia hoje por espiritualidade, onde o ser humano se encontra com Deus na própria intimidade. O conceito de espiritualidade me parece bem clarificado pelo filósofo e teólogo Leonardo Boff quando assim se pronuncia:

Espiritualidade, nesse sentido, significa viver segundo o espírito, ao sabor da dinâmica da vida. Trata-se de uma existência que se orienta na afirmação da vida, de sua defesa e de sua promoção, vida tomada em sua integralidade, seja em sua exterioridade, como relação para com os outros, para com a sociedade e para com a natureza; seja em sua interioridade, como diálogo com o eu profundo, com o grande ancião que mora dentro de nós (o universo dos arquétipos) mediante a contemplação, a reflexão e a interiorização, numa palavra, mediante a potenciação da subjetividade.[4]
De tal conceito depreende-se espiritualidade como a experiência interior de um conhecer/fazer e fazer/conhecer de nossa dimensão espiritual que afirma a vida na sua totalidade, sem a dicotomia entre Espírito e matéria ensinada pelas religiões tradicionais em sua lógica binária sobre a concretude da existência e a sua transcendência, portadoras de tal reducionismo que empobrecem sobremaneira o entendimento de nosso lugar no cosmos e no aqui e agora, tanto quanto atormenta as criaturas que vivem sob o látego da fé cega e da doutrina da culpa – ambas ferramentas domesticadoras historicamente postas a serviço da doutrinação das massas. Aliás, não é à-toa que, em sua visão crítica, Rubem Alves – também teólogo – cunhou a seguinte provocação filosófica: “Deus nos deu asas. Mas as religiões inventaram gaiolas”[5]. Coisa para a gente pensar, se não portamos o temor normótico de raciocinar em matéria de fé, evidentemente.

Quando as religiões produzem a racionalização[6] de seus princípios em oposição ao livre pensar, elas abafam a espiritualidade e efetivam, assim, o maior de seus erros, como lembra Frei Betto.[7] Nas posturas sectárias, exclusivistas, fundamentalistas, antiprogressistas, belicosas e ansiosas por hegemonia, as religiões obnubilam a luz da espiritualidade. Esse é o fator agônico de muitas religiões e, segundo o filósofo espírita Herculano Pires, “O sistema sectário, fechado e arrogante, arbitrário, não pode prevalecer num mundo que se abre para as relações cósmicas”[8].

Consideremos os avanços nas neurociências, na física quântica ou, até mesmo, na ecologia, na sociologia ou antropologia, no último século, que não será difícil reconhecer a certeza de nossas incertezas no campo do saber científico, quero dizer, a relatividade de nossos saberes matizados pelas circunstâncias materiais onde eles são produzidos. Somos forçados pelo bom senso a assumir a postura epistemológica difundida pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos[9], a da douta ignorância, ou seja, “saber que a diversidade epistemológica do mundo é potencialmente infinita e que cada saber só muito limitadamente tem conhecimento dela”. O que equivale a reconhecer os nossos limites epistemológicos diante da sócio diversidade do mundo, da pluralidade de práticas culturais, saberes e fazeres e, por que não dizer, das variadas formas de relação com o sagrado.

Voltando ao tema da espiritualidade, ela se manifesta no recôndito do ser como um convite interior para que o sujeito venha a transbordar, conectado às Leis Cósmicas da Vida, em amor e sabedoria na direção do próximo, interpretado aqui num conceito estendido a todos os seres da vida. Essa experiência de transcendência (ir além de si) naturalmente ocorre mobilizando uma ligação profunda e singela, sem aparatos exteriores, com a Causa Primeira. Espiritualidade, dessa forma, é uma experiência transpessoal de humildade, ação correta, calmaria, sensatez, ternura, gratidão a Deus e compaixão por todos os seres que se enraíza no silêncio e no recolhimento, bem diferente da espetacularização da fé que temos assistido na mídia religiosa no tempo presente.

A Espiritualidade de Jesus

Há mais de dois mil anos um jovem partiu da bucólica Nazaré para apresentar uma filosofia diferente para um povo cansado da ortodoxia religiosa, da dominação política e do engodo dos falsos profetas que pululavam em toda parte. Esse Nazareno propunha uma doutrina fundamentada em ensinamentos que ministrava em público, embora não se furtasse de dar lições na vida privada, junto ao Lago da Galileia, na via pública, em festas, com os pobres e, algumas vezes, nos templos destinados à tradição religiosa de seu povo.

Dos Evangelhos é possível extrair a essência de sua Doutrina cujo eixo fundamental consiste numa tríade do amor: o amor a Deus, o amor ao próximo e o amor a si mesmo[10]. Nesse sentido é oportuno recordar dois estudos feitos pelos Espíritos junto a Kardec e presentes em O Evangelho segundo o Espiritismo, livro em que se ocupa exclusivamente do ensino moral de Jesus, definido pelo próprio mestre lionês como código divino[11], o que significa que Allan Kardec via o Evangelho como uma coleção de preceitos ou normas éticas que traduziam de algum modo as Leis de Deus. O Mestre Jesus procurou revelar-nos essas Leis que regem a vida do Espírito imortal apesar de nossa pouca perspicácia para compreendê-lo à época.

Os estudos acima referidos[12] são dos Espíritos Fénelon, teólogo francês desencarnado, e de Sanson, ex-membro da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. No primeiro, Fénelon enfatiza a essência divina do amor e sua presença como centelha na intimidade de todos nós perceptível nas mais variadas formas de manifestação de amor que somos capazes de dar, apesar de nossas imperfeições morais. Nessa perspectiva o benfeitor espiritual considera que os efeitos sociológicos da vivência do amor seriam a renovação humana e a felicidade na vida terrestre. Já Sanson conceitua o amor, dando-nos material suficiente para aprendermos que esse sentimento deve extrapolar as considerações metafísicas a seu respeito e não se tornar mero adorno no âmbito das subjetividades. Afirma Sanson:

Amar, no sentido profundo do termo, é o homem ser leal, probo, consciencioso, para fazer aos outros o que queira que estes lhe façam; é procurar em torno de si o sentido íntimo de todas as dores que acabrunham seus irmãos, para suavizá-las; é considerar como sua a grande família humana (...).

Vejamos que esse conceito espírita do amor destaca valores como a lealdade, a probidade, a consciência da responsabilidade para com a felicidade dos outros e está pautado na regra áurea ensinada por Jesus. De fato, Sanson também apresenta a práxis do amor no exercício da compaixão que implica em um entendimento da dor alheia para que o indivíduo possa aliviá-la. Além disso, o benfeitor aponta a ideia do amor universal ao propor que vejamos como nossa a grande família humana, notadamente exortando-nos à fraternidade universal – saber necessário à superação de preconceitos e sectarismos de qualquer monta. De que atualidade e amplitude de aplicação não são esses valores?!

São valores humanistas cuja fonte espiritual está, sem dúvida, embasada na espiritualidade daquele jovem de Nazaré que marcou a história ensinando e exemplificando a sua tríade do amor. Ademais, ele deixou como critério de verdade do amor a Deus o amor ao próximo quando teria dito: Se alguém diz: “Eu amo a Deus, e odeia a seu irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu?”[13]. Religiosidade que não se materializa na vivência do amor ao próximo consiste em jogo de aparências, a piedade fica teatralizada e a caridade acaba por ser mero marketing pessoal.

A espiritualidade de Jesus, tão esquecida no Natal comercial e materialista vigente em nossa cultura, pode ser sintetizada na práxis do amor que deve se constituir em vivência de cada um dos valores já destacados. Meditemos em torno deles e façamos uma útil reflexão pós-Natal. Esse presente a gente merece!
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[1] GIBRAN, Kahlil. Jesus, o filho do homem. Rio de Janeiro: PoketOuro, 2009, p. 59.
[2] Vide o artigo de Aureci Figueiredo Martins intitulado “Fundou Jesus alguma religião?”, postado neste blog.
[3] Vide o texto “Apreciações sobre a normose”, de minha autoria, postado no site: http://saberesdoespirito.blogspot.com.br/2010/03/apreciacoes-sobre-normose.html.
[4] BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização, espiritualidade. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 215.
[5] ALVES, Rubem. Perguntaram-me se acredito em Deus. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 207, p. 55.
[6] A palavra racionalização deve ser entendida aqui no sentido que lhe atribui o pensador francês Edgar Morin, trata-se da patologia da razão que encerra o real num sistema de ideias coerente, mas parcial e unilateral. Vide: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Tradução Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 15.
[7] BETTO, Frei; GLEISER, Marcelo; FALCÃO, Waldemar. Conversa sobre a fé e a ciência. Rio de Janeiro, 2011, p.88.
[8] PIRES, Herculano. Revisão do Cristianismo. São Paulo: Editora Paideia, s/a, p. 45.
[9] SANTOS, Boaventura de Souza. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, Porto, n. 80, Março 2008, p.17.
[10] Marcos 12: 30, 31.
[11] O Evangelho segundo o Espiritismo, Introdução, Objetivo desta obra.
[12] O Evangelho segundo o Espiritismo, Capítulo XI, itens 9 e 10.
[13] I Jo 4:20.
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(*) Prof. Dr. Vinícius Lima Lousada - Bento Gonçalves/RS - Brasil
E-mail: vlousada@hotmail.com